terça-feira, 16 de maio de 2017

Anarquistas Graças a Deus - Meu Avô e Eu


Quem apareceu com a novidade foi a minha tia Ilma. Ela foi a grande responsável por introduzir o livro da Zélia Gattai à família. Ela o comprou e o devorou em poucos dias. Depois foi a vez do meu avô. Ele simplesmente não o largou mais. Deve tê-lo lido pelo menos umas cinco vezes ao longo da sua vida.

Tornou-se um ardoroso fã da escritora. Nessa época eu tinha doze anos e o meu irmão seis. Não queríamos nem saber de ler. A gente gostava mesmo era da montanha de gibis, da preciosa coleção, do meu avô.

Meu irmão ainda estava aprendendo a ler e passava a tarde toda gaguejando na leitura, o que me irritava bastante. Preocupado, talvez, com o nosso desenvolvimento literário o meu avô resolveu tomar uma providência. Muito antes de O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder, ser um sucesso mundial, meu avô já havia usado a mesma tática do Alberto Knox. Meu avô sentou-se, pacientemente, e copiou duas páginas de Anarquistas, Graças a Deus e, embora eu já conhecesse sua letra, enviou-me anonimamente pelo correio. O meu irmão recebeu meia página com As Aventuras do Cachorrinho Samba.

Eu achei aquela carta a coisa mais maravilhosa do mundo. Era a minha primeira cartinha e a história, contida naquelas duas páginas, me prendeu desde o primeiro parágrafo. No final da carta tinha uma pequena mensagem: essa história continua na página dez, do livro que está em cima do criado, no quarto do vovô. Terminei de ler a carta e imediatamente corri para o quarto dos meus avós. Não desgrudei mais do livro. Naquele dia quando o meu avô chegou do trabalho encontrou meu irmão e eu compenetrados em nossas leituras.

Eu adorei a história. Essa leitura, depois, rendeu-me bons momentos com o meu avô. Por causa do livro até criamos alguns códigos. Muitas vezes ficavámos horas conversando sobre nossas impressões de  o "Anarquistas". Ele comparava as histórias da Zélia com as dele e de sua família Italiana. Envolvemo-nos de tal forma com o livro e as histórias se misturaram tanto que algumas vezes ficava dificil saber se as histórias eram as dele ou as da Zélia.

Eu também me tornei fã da autora. Li praticamente todos os seus livros. O meu avô converteu-me, para sempre, numa leitora fiel de Zélia Gattai. Naquele mesmo ano assistimos à minissérie, que foi veiculada peça Rede Globo, e nos divertímos muito com as trapalhadas da pequena Zélia e seus irmãos.

Anos depois, eu já estava morando em Cuiabá, numa tarde qualquer, liguei para o meu avô. O aniversário dele estava próximo eu queria lhe mandar um presente. Queria lhe dar algo que ele realmente fosse gostar e então pedi-lhe que me dissesse o que o faria feliz. Ele então me respondeu, com aquele jeitão italiano dele: ah, me manda um Anarquistas, da Zélia. Eu queria lê-lo novamente e não tenho mais o meu. No mesmo dia comprei-lhe uma nova edição e despachei, junto com uma carinhosa cartinha, para ele.

Em julho de 2007, quando o meu avô faleceu, eu já estava, há tempos, de volta a São Paulo. Naqueles dias que se seguiram ao velório, fiquei buscando na memória todas as lembranças que eu tinha do meu avô. Evidentemente acabei me lembrando do livro, das conversas e das nossas risadas. Imediatamente juntei todos os livros da Zélia que eu tinha em casa, empilhei-os e me pus a lê-los compulsivamente, começando, é claro, por Anarquistas. Em poucos dias reli todos.

Reler todas aquelas histórias, tão familiares, devolveu meu avô à vida. Emocionei-me. Foram dias e dias completamente absorvida pela leitura. Apesar de não ter mais o meu avõ e juntos rirmos, uma vez mais, das histórias, eu o senti muito próximo.

Enquanto relia Anarquistas, houve uma manhã de domingo, era muito cedo e estava muito, mas muito frio. Eu estava lendo em casa e de repente levantei-me, peguei o carro e fui até a Alameda Santos. Estacionei o carro em frente ao local exato onde ficava a casa da menina Zélia. Niguém pode imaginar o que significou ler um capítulo inteiro, daquele livro, lá, exatamente onde tudo havia acontecido. Fiquei analisando cada detalhes. Aquelas árvores antigas, que eu olhava naquele instante, haviam testemunhado tudo o que eu estava lendo. Para o meu total espanto a farmácia, que a Zélia descreve no livro, em meados dos anos 1920, onde trabalhava o namorado da Maria Negra, ainda estava lá no mesmo lugar, em 2007.

Desci do carro e fiquei andando pela calçada, sentindo o ventinho gelado no rosto e imaginando o quanto o meu avô teria gostado de estar lá comigo naquele momento. Envolvida com os acontecimentos, ao chegar em casa, comecei pesquisar na Internet tudo o que podia sobre a Zélia Gattai. E em uma página de relacionamentos, encontrei o perfil de Paloma Jorge Amado, filha da autora. Deixei um recadinho para ela, contando como o livro havia sido importante na minha história com o meu avô. No dia seguinte, para minha total felicidade, recebi uma resposta de Paloma:

"Adriana, querida, li sua mensagem logo antes de sair para casa de mamãe, onde jantei. Fiquei tão emocionada que copiei para ela, que se emocionou muito também. Depois chegou o meu irmão e a minha cunhada, e a conversa girou em torno de suas palavras, lindas, singelas e tocantes. Foi realmente um momento muito especial que você e o senhor Domingos Mani nos proporcionaram. Um beijo muito afetuoso que manda mamãe, Dôra, João e eu mesma. Obrigada, minha linda.".

Fiquei muito emocionada quando li o recado de Paloma. Pensei no meu avô e senti um certo alívio ou uma sensação de dever cumprido. Finalmente a Zélia soube que o meu avô existiu e que foi, talvez, o maior fã que ela já teve,

No dia 17 de  maio de 2008, aos noventa e um anos, Zélia também se foi. Eu gosto de imaginar que eles possam estar juntos hoje, em algum lugar, e que o meu avô finalmente esteja compartilhando com ela as histórias dele.


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