terça-feira, 25 de abril de 2017

Adelina - uma história triste.


A tia Adelina Mani, nasceu em 1918 e era a irmã mais velha do meu avô.  Ela é a protagonista do relato mais triste que eu já ouvi na vida. Uma história que escuto desde que me entendo por gente, mas que apenas com a maturidade entendi o quanto era dolorosa.

Ainda ontem recebi a notícia que a minha prima Nair, filha dela, faleceu. A família da tia Adelina acabou! Não existe mais! Junto com a Nair foi-se também todos os genes da minha tia. Nenhum descendente, nenhum neto, nenhum parente, que se tenha conhecimento, restou dela. Mas, nem sempre foi assim.
A Adelina era uma jovem linda. Primeira filha do jovem casal Adelaide e Ângelo Mani, meus bisavós. A moça bonita se casou cedo e, com o esposo, construiu uma linda família. Em pouco tempo tiveram quatro filhos.


Junto dos filhos: Orlando, Flor, Nair e Edith (nesta ordem na foto), o casal foi muito feliz. Com os filhos já grandinhos, mudaram-se para Dracena, no interior de São Paulo. Foi lá que tudo aconteceu.

Pouco tempo depois que a única fotografia deles foi tirada, meus tios sofreram uma enorme tristeza. A filhinha caçula deles, a Flor (a menor sentada), faleceu. Eu não sei muito bem como tudo aconteceu, mas a pequena criança foi eletrocutada e sua irmãzinha Nair (maior sentada), de apenas cinco anos, assistiu a tudo.

A família ainda estava se refazendo da morte trágica da filha caçula, quando a Nair, então com seis anos, teve uma meningite bacteriana. Meus tios - muito pobres - moveram céus e terra para tentar salvar a filha.

Eles estavam vivendo numa época de grande crise, no final dos anos 1940, e não tinham quase nenhuma condição financeira. Mesmo assim, foram com a filha até a capital, São Paulo - em busca de uma medicina mais avançada que pudesse salvar a vida da criança. Sem ter como levar os outros filhos, deixaram o Orlando e a Edith com uma vizinha.

Como se sabe o tratamento para meningite bacteriana -  ainda hoje - é muito difícil. Naquela época era ainda mais complicado. Meus tios ficaram ao menos três meses com a Nair internada na Santa Casa de Misericórdia, sendo ajudados por pessoas desconhecidas.

Com tanto esforço e dedicação, meus tios conseguiram salvar a filha, mas ela ficou com sequelas da doença. O cérebro da pequena Nair estacionou e ela não evoluiu mais intelectualmente. Ela passou toda sua vida sendo uma menininha esperta, mas foi sempre uma criança de seis anos de idade.

Quando retornaram à Dracena, nova tragédia se abateu sobre a família. Durante a estadia deles na capital, o casal pouco ou nenhum contato tiveram com os filhos. O único meio de comunicação disponível para eles naquele tempo eram as cartas - que demoravam muito e, não raro, se extraviavam. Quando finalmente voltaram para casa, a vizinha havia ido embora com os filhos mais velhos da minha tia-avó.

Meus tios quase enlouqueceram. Procuraram os filhos, sem sucesso, por todos os cantos desse país. A única informação que tiveram na época foi que a tal vizinha havia se mudado para Rondônia - lugar de difícil acesso e comunicação. Meu tio chegou ir até lá tentando encontrá-los e minha tia passou a vida inteira mandando cartas para rádios em busca dos seus filhos, mas eles jamais foram encontrados.

Várias pessoas da família - eu incluso -  ao longo dos anos se mobilizou de alguma forma para encontrá-los, mas até hoje ninguém de nós conseguiu achá-los. O que nos leva a crer que a vizinha os levou propositalmente.  As crianças podem ter tido seus nomes trocados ou ter sido mortas.

Com o insucesso nas buscas, os meus tios se abateram ainda mais. O tio ficou muito deprimido, foi se debilitando, ficou muito doente e faleceu pouco tempo depois. A tia Adelina ficou sozinha com a Nair para cuidar. Quando souberam, meu avô e os irmãos dele, buscaram a irmã e a sobrinha e as levaram para o Paraná, onde viviam. Elas passaram a morar com a minha bisavó Adelaide numa casinha aos fundos da igreja, que ela frequentava.

As três moraram nessa casa até 1982. Nessa época eu estava completando dez anos  e morava com os meus avós. Lembro-me bem delas - que nos visitavam com bastante frequência. O meu avô,  que sempre foi muito bem humorado e tinha costume de apelidar a todos, as chamava de "as cajazeiras". O apelido era um referência às personagens da novela "O Bem Amado", que, como as minhas parentes, só andavam juntas e de braços dados. Em setembro de 1982, alguns meses depois da minha festa de dez anos, a minha bisavó também faleceu.


(as "cajazeiras": Nair, minha bisavó Adelaide e a tia Adelina - fevereiro/1982)

Depois disso, a Nair e a tia, foram morar numa casinha no fundo da casa do meu tio João, irmão do meu avô. Meus outros tios - João e Emília - cuidaram delas por muitos anos. Uma das filhas deles, Maria Elena, tentou por muito tempo encontrar os primos, mas também não teve sucesso. Numa das minha investidas pela Internet me empolguei com um achado - ao buscar os nomes deles, encontrei uma referência, mas ao abrir a página era apenas uma postagem da Maria Elena procurando também por eles.

A tia Adelina era muito boazinha. Em todas as minhas lembranças a vejo sempre calma, serena e muito calada. Eu era muito nova e não tinha ideia de todo o sofrimento que aquela pessoa carregava. A visitei pela última vez em 1996 - quando soube um pouco mais da sua história. Ela já estava velhinha e bastante adoentada. Em 1997 ela faleceu.

A Nair continuou sendo cuidada pelos meus tios João e Emília. Em 2009, Diego e eu fomos visitá-los. Encontramos a mesma Nairzinha de sempre: uma criança - já envelhecida - ainda com seis anos na mentalidade. A mesma menininha que brincou - quando pequena - com o meu avô criança. Anos depois, já adulta, brincou com a minha mãe, meus tios e seus primos quando pequenos. O mesmo aconteceu comigo e os meus primos: durante toda a nossa infância brincávamos com a -  já madura -  Nair. Todos nós, várias gerações, dividimos nossa infância com a mesma criança. Em 2009 ela ainda brigava, por bonecas, com a Maria Luísa - filhinha da minha prima Ana, que tinha quatro anos.

Ontem conversando com a minha prima, Edenira, nos lembramos da boneca gigante que a Nair tinha. Era uma boneca "amiguinha" quase do nosso tamanho. Nós ficávamos doidas pelo brinquedo, mas a Nair não nos deixava sequer chegar perto dela. Alguém da família deu à ela uma boneca compatível com o seu tamanho já que ela era uma mulher enorme.

Tio João e tia Emília, queridos, cuidaram da Nair o quanto puderam. Só apenas à alguns poucos anos - quando eles mesmos passaram a necessitar de cuidados - foi que a Nair passou a viver num asilo. Meus tios já estão bem idosos, ambos com mais de 90 anos, e não tinham mais condições de cuidar dela. No domingo, 23/04/2017. A saga da "Menininha Peter Pan", que era como eu a chamava, chegou a fim. Nair sobreviveu à um câncer de mama, há vinte anos, mas não resistiu a uma infecção intestinal.

E eu vou me lembrar para sempre dela. Da menininha que jamais perdeu o encantamento infantil e uma alegria gratuita. Que nunca deixou de se empolgar com tudo o que via. Vou lembrar sempre daquela criança - agora já idosa e de cabelinhos brancos - me mostrando tão entusiasmada o seu quartinho, um monte de fotografias antigas ou me mostrando, sem o menor pudor, o seu peito mastectomizado. A menina-senhora que, aos quase oitenta anos, ainda falava: "iguêza", "tia Concêção" e me chamava de "Adinhâna". Que tinha um coração bondoso e uma memória inacreditável. Você podia passar dez anos sem vê-la, mas ela sempre vinha correndo e sorrindo te abraçar como se tivesse estado com você no dia anterior.














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