Outro dia, Diego e eu, visitamos um amigo querido: 'Seu' Agostinho Martins Pereira. O 'Seu' Agostinho é um senhorzinho de 87 anos que durante quase cinco anos foi meu vizinho, no sobradinho da Rua Caracas onde eu trabalhava.
Quase todas as tardes, eu fugia do trabalho para papear no portão ou tomar chá com o meu vizinho querido.
Nos conhecemos por causa de um gatinho. Um belíssimo gato de pelos cinza. Enquanto a filha passeava por Londres e Paris ele tomava conta do bichano.
Numa tarde quente o felino fugiu e entrou sorrateiro na minha sala. Minutos depois, um senhorzinho bastante interessante aparece procurando pelo fujão. Ali mesmo engatamos uma conversa que durou a tarde toda.
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Na manhã seguinte lá estava o vizinho, na sacadinha da sua casa, me acenando e mandando beijos. Desse dia em diante passou a fazer isso quase todas as manhãs. Passei a ser recebida, ao chegar ao trabalho, pelo meu adorável amigo com sonoros: "Bongiorno Principesa" ou "Bon Jour ma Cherrie!"
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Eu me acostumei rápido com seus acenos e beijos matinais. Durante as tardes, pouco antes do final do expediente, fazíamos um pequeno sarau: falávamos de poesias, de lugares, filmes ou coisas da vida. Algumas vezes tomávamos chá.
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Só depois de uns dois ou três anos de amizade é que descobri quem era de verdade o meu vizinho querido. Entre uma conversa e outra contei para ele que estava revendo os velhos filmes da Dercy Gonçalves. Quase cai dura quando ele humildemente contou:
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- Sou um cineasta aposentado. Trabalhei na Companhia de Cinema Vera Cruz, você já ouviu falar? Dirigi nove filmes, entre eles 'Apassionata', filme que escrevi para a Tônia Carrero. Foi também o primeiro filme em que o Paulo Autran atuou.
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E eu ali perplexa:
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- Como é que é? O Sr. fez o que?
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E ele:
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- Sou cineasta e fiz nove filmes. Já assistiu o Gato de Madame do Mazzaroppi? Eu dirigi alguns filmes dele.
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Nesse dia ficamos papeando no velho portão enferrujado até anoitecer. Ao chegar em casa fui direto para a Internet e digitei: 'Agostinho Martins Pereira'. Não encontrei muita coisa sobre o anônimo descobridor do Mazzaroppi.
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O fato dele ser um dos mais importantes cineastas da época gloriosa do cinema brasileiro, não alterou em nada nossa rotina. Continuamos a falar sobre banalidades e gatos.
Fui sua vizinha por mais dois anos. Tempo suficiente para conhecer e me casar com outro amante do cinema. Quando contei ao Diego sobre meu amigo famoso ele ficou empolgadíssimo. No mesmo dia me fez levá-lo para conhecê-lo. Foi paixão à primeira vista.
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O cineasta estava de bom humor. Fez piada com as nossas alianças feitas de casca de coco pelos Índios Zorós, do Mato Grosso. Ele também gostou do Diego, mas não queria, de jeito algum, falar sobre cinema. Talvez alguma mágoa ainda lhe machuque o coração.
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Alguns dias depois entenderíamos melhor sua reserva. O Diego, desde que conheceu 'Seu' Agostinho, passou a pesquisar sobre ele. Numa tarde conversando com o nosso herói me contou que haviam lançado um livro com a biografia dele.
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Descobrimos que a vida do nosso amigo era infinitamente mais interessante do que poderíamos supor. Ele foi simplesmente um dos fundadores da antiga Companhia de Cinema Vera Cruz. Sua história de vida é fascinante.
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Lendo sua biografia, meu carinho por aquele senhorzinho - que cresceu no Itaim Bibi - só fez aumentar. Ele foi um garoto muito pobre que vendia bananas para comprar cadernos e crescia obstinado a se tornar cineasta.
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Conforme avançava na leitura fiquei ainda mais encantada com a sua história que, aos poucos, se confundia com a história daquele bairro tão meu conhecido. 'Seu' Agostinho viu nascer o Itaim Bibi, ia de bicicleta tomar banho no Rio Pinheiros e viu a avenida Juscelino deixar de ser um areal, que ia até o rio, e se transformar numa das avenidas mais importantes de São Paulo.
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Tempos depois a empresa, para qual eu trabalhava, se mudou da casa ao lado. No dia da mudança arrumei minhas coisas com o coração apertado e os olhos marejados de lágrimas. Escrevi-lhe na cartinha de despedida: "O senhor foi a melhor parte desses cinco anos que passei aqui".
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Prometi visitá-lo, mas na correria do dia a dia, sempre acabava adiando a visita. Até que finalmente conseguimos ir vê-lo. Foi um momento muito agradável, estávamos felizes com o reencontro e por outra vez conversarmos animados no velho portão.
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'Seu' Agostinho continua o mesmo senhorzinho excêntrico que sempre ia, de pijamas e chinelinhos, me chamar no escritório para tomar chá com ele. Continua com o mesmo humor inocente, que muito lembra o meu falecido avô. Quando lhe perguntei se iria viajar no feriado, me respondeu:
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- Olha filha, não pretendo viajar, mas na minha idade nunca se sabe quando viajaremos.
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Uma vez mais me diverti muito com o meu velho amigo e senti uma alegria imensa por estar ali, de novo, naquele portão jogando conversa fora.
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Muitas manhãs, quando vou ao trabalho, o vejo de longe - com suas sandálias franciscanas, meias e bermudas - voltando da padaria com um pacotinho de pães.
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Todas as vezes que o vejo agradeço por vê-lo ainda com saúde buscando seu próprio pão e o jornal. Todos os dias eu agradeço por um dia ter encontrado um amigo tão querido e especial.
(postagem original 13/09/2011)
Em janeiro de 2017, o 'Seu' Agostinho faleceu e eu só soube disso há dois dias.
O meu amigo tão querido foi embora, resolveu viajar sem me avisar. E eu fiquei ali parada, na frente da casa dele, olhando aquela sacadinha vazia, aquele portão e pude até ouvir em meus pensamentos: Bon jour ma cherrie! E eu vou morrer de saudades de você 'Seu" Agostinho.